Literatura Brasileira

O CALVÁRIO DA VERDADE (Por: Mário Bento)

Venham camenas brasileiras,
Encham-me de inspiração
Deixe-me narrar nestes versos
A história de um vilão
Perverso, ganancioso,
Idealizador da ambição.

Só Deus é Uno, é Eterno,
Senhor do céu e do mar,
Nada se move no mundo
Sem o Mestre autorizar,
Ninguém faz sem receber
E nem recebe sem dar.

Deus é a chave de tudo:
É o balsamo do sofredor;
O juiz do prepotente;
A esperança do sonhador;
O alento do infeliz;
O Elo de um grande amor.

No País do povo esquecido,
Encravado em meio à solidão
A Atlântida dos nobres plebeus
Construída no seio do sertão
Vivem os pais de Marralla,
Cultivando a linhagem, a tradição.

Dom Estevão de Quilmar era casado
Com dona Etína de Aman Quilmar,
Nobres, falidos, mas cheios de pouses,
Viviam de um passado sem passar,
Herdaram muitas léguas de terras,
Mas nunca as pode explorar.

Seu pai, um senhor feudal,
Que viveu em plena opulência;
Ao perder o poder político,
Regalia e influência,
Morreu louco, condenando o mundo,
Quando entrou em decadência.

Apenas terras e mais terras
Dom Estevão possuía,
Porém, dinheiro, prestígio,
Há tempo não os conseguia
Devido a sua ambição
E ganância em demasia.

Tomava as terras dos pobres
Anexando-as ao seu império,
Não respeitava o direito,
A justiça era um refrigério
Para as suas más intenções
E sem levar as leis a sério.

Sem cobres, mas ricos de orgulho...
Soberbos, e acima da razão;
Monstruosos diante da pobreza
Usurpadores cruéis sem compaixão,
Não mediam esforços nem prepotência
Para espalharem os males da humilhação.

Eles se apresentavam no meio social
Como filhos escolhidos do poder,
Zombavam do fadário dos pobres,
Esnobando-se diziam merecer...
As benesses dos deuses e dos homens
Pelo sangue que herdaram ao nascer.

Pisavam os humildes com arrogância,
Empregados eram meros serviçais
Pobres seres sem valores e estúpidos
Tratados como indignos animais
Sofriam na carne as truculências
Desses feros demônios infernais.

Desse casal de carrascos “nasceu”
Uma criança linda e muito bela,
Um antigo oráculo foi consultado
E estava de forma bem singela
Escrito com letras douradas
Que Marralla seria o nome dela.

Levada a pia batismal
A pequena esse nome recebeu,
A tradição do meio familiar
Foi o dogma que mais prevaleceu
Nome de rico – dizia o pai,
Fica registrado no céu.

Filha única cresceu aprendendo
A arrogância e a loucura dos seus “pais”,
Feria a muitos por prazer
E com atitudes fúteis, banais...
Humilhava com alegria
E gestos cômicos, teatrais.

Tornou-se moça bonita
Com traços e curvas sensuais,
Dengo e perfeição no andar
Olhar das deusas siderais,
Mas, sua índole perversa...
Herdou dos seus “ancestrais”.

Aos vinte e um anos de idade,
Era a beleza encarnada,
Só sendo filha dos deuses
Em pessoa transformada,
Era um anjo que aqui chegou
De uma terra encantada.

Mesmo com tanta petulância
Não impediam os admiradores,
Varões ricos e potentados
Até pobres sonhadores
Desejam a linda jovem
Com mil juras de amores.

Ela rejeitava a todos
Com escárnio e humilhação,
Desdenhava os jovens na cara
E tripudiava na situação,
Daqueles que a cercavam
Para excitarem a sua atenção.

Assim, Marralla seguia...
Indomada nas suas ações
Praticando o que entendia
Destruindo corações,
Indolente com os pobres
E infame nas emoções.

Aqui vou deixar Marralla,
Insensível em potencial,
Para tratar de um jovem,
Brioso, puro, especial,
Da mesma idade da fera,
Distinto, simples e leal.

* **

Rilman era filho “único”,
De origem humilde, recatado,
Honesto, justo, prudente,
Belo, distinto, afeiçoado,
Gozava de reputação
Por todos era adorado.

Seus pais temiam a Deus
Não cobiçavam riqueza,
Criaram Rilman com estilo
E sensata delicadeza,
Decidido, firme e franco:
Um cidadão de grandeza.

Tinha o corpo bem talhado
Ágil, intrépido, vigoroso,
Inteligente, destemido,
Calmo e consciencioso,
Era um filho da verdade,
Um tesouro extremoso.

Morava na casa dos seus pais:
Seu Audálio Silva e Dona Adelaide,
Amava-os com fervor
E cheio de felicidade
Dizia: são duas pérolas
Que me dão tranqüilidade.

Administrava sozinho
Os bens da família silva:
Um pequeno pedaço de terra,
Quase uma horta, mas ativa,
Que produzia de tudo,
De forma competitiva.

Leite de cinco vaquinhas
Era vendido na cidade,
Tomate, coentro, pimentão,
Inhame de boa qualidade,
Batata doce, manga, banana,
Graviola em quantidade.

Batatinha, cenoura, beterraba,
Melancia, pinha, melão,
Goiaba, cajá, pitomba,
Seriguela, caju, mamão,
Umbu, macaxeira, berinjela,
Jerimum, milho verde e feijão.

Certo dia Dom Estevão,
Numa viagem a região
Passou nas terras dos silvas,
E despertou-lhe a atenção,
Tudo verde e bem cuidado
E com farta produção.

Perguntou a um senhor
Que passava na estrada
Se ele conhecia o dono
Daquela terra bem cuidada,
O ancião disse que sim
E ensinou a entrada.

Dom Estevão saiu dali
Em direção ao local,
Indicado pelo senhor
E foi-se ter afinal
No sitio da família silva,
Um paraíso colossal.

Rilman o acolheu e perguntou:
- o que deseja cidadão?
Quero adquirir essas terras
E não quero discussão!
- Rilman lhe disse – não está à venda,
Sinto muito, é a decisão.

Mas que decisão que nada!
Eu sou Estevão de Quilmar,
Dono de léguas de terras
Respeitado em todo lugar,
Sou de uma família rica
De tradição milenar.

Amanhã logo cedinho
Vá à cidade me esperar,
No cartório de imóveis
Para você assinar
O termo de compra e venda
E a escritura passar.

Deu as costas e foi saindo
Sem ao menos se despedir,
Rilman que nada entendeu
Foi impelido a sorrir,
Da atitude do estranho
Que falava sem refletir.

No outro dia Rilman
Do fato nem se lembrou,
Sua rotina de trabalho
Logo cedo iniciou,
Sem pensar nas artimanhas
Do estranho que lhe visitou

Trabalhou a manhã inteira
E quando veio almoçar,
Encontrou na casa do sitio
Um homem a lhe esperar,
Que se identificou dizendo:
Eu sou Palhares Pontuar.

Disse Palhares Pontuar:
- Seu Rilman, por favor?
- Sim. Sou eu – respondeu Rilman,
Posso ajudar no que for
- Disse Palhares – são documentos
Endereçados ao senhor.

É sobre a venda do sitio
Para o senhor confirmar,
Se ela concretizou-se
Para eu poder registrar
A operação em cartório
E a escritura passar.

Disse Rilman – senhor Palhares,
Eu nada posso fazer,
Sobre a venda deste sítio
Só papai vai responder
E pelo o que ele me disse
Não lhe interessa vender.

Meus antepassados nasceram aqui
Viveram e morreram neste lugar,
Papai também nasceu neste sítio
Casou-se e aqui veio morar,
Eu nasci aqui e aqui trabalho
E não penso em me mudar.

Hoje, meus pais são aposentados,
Porque não podem trabalhar,
Vivem a força na cidade,
Levam a vida a lamentar,
Porque não podem vir ao sítio
Muitas vezes os vi chorar.

Portanto, senhor Palhares,
Eu não sei quem o mandou
Aqui me fazer proposta
E nem interessado estou
De receber tal proposta
Perdoe-me – já almoçou?

Não. Mas obrigado pelo convite
– disse – Palhares Pontuar,
Estou realmente a mandado
De Dom Estevão de Quilmar,
Aquele homem que aqui esteve
Querendo o sítio comprar.

Não senhor – disse – Rilman
Ele nada quis comprar,
Simplesmente esteve aqui,
Achando que pode mandar
Em tudo que está em sua volta
E isto aqui não vai vingar.

Eu não o conhecia pessoalmente,
Apenas de nome e fama:
Ganancioso, insolente,
Ignóbil, nobre em lama,
Já ouvi as suas histórias
A respeito do seu drama.

Seu Palhares, diga a esse senhor,
Que eu não tenho tempo a perder,
Diga-lhe também que o sítio
Não o tenho para vender,
Desculpe-me estou de saída,
O senhor pode me compreender?

Sim. Eu também vou embora,
Não posso mais me demorar,
Dom Estevão é impaciente
Não gosta de esperar,
É um homem muito rico,
Tem outros negócios a tratar.

Muito bem – disse – Rilman
Nossa conversa aqui se encerra.
- Palhares disse – seu Rilman,
Prepara-se então para guerra,
Dom Estevão só vai sossegar
Quando tomar a sua terra.

Obrigado pelo aviso
- Disse Rilman, sem temer;
Farei o que for preciso
Para o sítio proteger;
Só Deus me tira daqui
Ou quando um dia eu morrer!

Palhares disse – até logo.
- Disse Rilman – até nunca mais.
- Palhares o olhou com desdém
E gesticulou em sinais
Talvez querendo insinuar:
Desistir sem logro, jamais.

***

No caminho de volta a cidade
Palhares, mil planos elaborou,
Para justificar o seu insucesso
E porque tanto tempo demorou,
Sabia que ia ser sabatinado
Para se explicar como fracassou.

Mal chegou já foi sendo questionado
- o senhor me deve uma explicação.
Quero saber o porquê dessa demora
E por que essa cara de preocupação?
Viu fantasma ou de lá saiu correndo
Ou qual é do rapaz a posição?

Palhares quase sem fala – disse:
Senhor lá não existe posição,
A terra não estar à venda
Esta é do rapaz a decisão,
Fui bem tratado e não sai correndo,
O moço lá é um fino cidadão.

Dom Estevão, ouvindo esse comentário,
Disse – Palhares, eu lhe dei uma missão,
Que deveria ser cumprida à risca,
Mas você fracassou, é um bonachão,
Infame, sem miolos, incompetente,
Que perde a luta e elogia o campeão.

Seu comentário me ofendeu muito
Até porque nunca vi um pobre fino,
Sempre lhe dei tratamento rude
Por ser gente grosseira e sem tino;
Saiba Palhares que o pobre é tolo
E fácil de enganar que nem menino.

Mas enfim, diga-me seu Franciscano,
Recolheu pelo menos uma informação?
Sim, Dom Estevão, uma importante,
Que merece do senhor toda atenção,
Os pais do rapaz moram aqui pertinho,
Sozinhos e sem nenhuma proteção.

O quê você quer dizer sem proteção,
Meu caro Palhares Pontuar?
Não sou mais o mesmo de antigamente,
Aqueles métodos – já os deixei de praticar;
Vamos descobrir outro meio,
Não podemos mais nos arriscar.

Palhares retrucou – Dom Estevão
Não há nada do que temer,
Eles são pobres, o senhor é rico,
Além do mais, o quê lhe pode acontecer?
Até a justiça “acredita” no senhor,
Quem mais poderá lhe aborrecer?

Vamos lá apenas como visitas
Assim ninguém vai desconfiar,
Também não vai ter violência
Vamos unicamente perguntar
Se o sitio deles estar à venda
Porque desejamos comprar.

Levamos papeis em branco,
Pois somos da previdência;
Eles precisam ser recadastrados
Com o máximo de urgência;
Deles colhendo as assinaturas
São as provas da anuência.

Os papeis estando assinados
Passaremos a lhes perguntar
Se eles conhecem alguém
Que possa nos orientar
Sobre sítios que estão à venda
Ali naquele lugar.

Porque somos da capital
E gostamos da região,
Ficamos impressionados
Com a beleza desse sertão;
As terras parecem férteis
E boa para a plantação.

Dom Estevão aprovou
O plano de Pontuar
Dali foram à casa dos Silvas,
Mas não puderam se aproximar
Porque viram Rilman na calçada
Com os pais a conversar.

Rilman estava de costas para a rua
E nada que se passou percebeu,
Apenas viu a sua mãe gritar Pon...
E cair com o desmaio que sofreu;
Seu Audálio também não viu nada
Nem explica o que aconteceu.

Rilman socorreu a sua mãe
Interrogando – o que foi que aconteceu?
Mamãe estava bem de saúde, alegre.
E de ontem para cá nada sofreu,
Será meu Deus que o coração dela
Enfartou e a pobrezinha morreu?

Mamãe, mamãe gritava Rilman.
Não deixe a gente, por favor,
Papai precisa muito da senhora,
Eu não sei viver sem o seu amor...
Desperte mamãe! Eu a quero viva
Como estrela de imenso esplendor.

Seu Audálio sem conter a emoção
Exclamou – meu Deus Pai de bondade!
Sois o alento dos infelizes;
Sois o verbo do amor, da caridade;
O arrimo dos fracos e oprimidos
Que vivem neste mundo de maldade.

Não deixeis ò meu Deus que Adelaide
Morra sem conhecer a sua flor
Que há tempo foi levada embora
Pelas mãos de um bandido sem amor,
Oh! Deus Vossa obra só será completa
Se em vida permitirdes esse favor.

Esposo e filho choravam de um lado,
Os vizinhos lamentavam entristecidos,
Mas aos poucos dona Adelaide
Foi recobrando os sentidos,
Pai e filho exultavam de alegria
Agradecendo a Deus e comovidos.

Depois de recuperada do susto
E deitada sobre a sua cama,
Dona Adelaide abre os olhos lentamente
E de cara ver os entes que tanto ama,
Sorrir feliz vendo o esposo e o filho
Não se queixa de nada e nem reclama.

Apenas disse – foi um mal estar passageiro,
Mas fiquem tranqüilos já passou,
Estou viva para continuar nossa luta
O meu Deus com certeza me poupou
A vida para uma grande alegria
Para isso, meu filho, aqui estou.

Rilman disse – mamãe nos diga
Por que a senhora desmaiou?
Se estiver doente não esconda,
Exponha-nos o que acarretou
Esse mal tão grave e repentino
Que muito nos preocupou.

A senhora antes de cair balbuciou
Algo como Pon... A palavra não concluiu.
Há algo mamãe que eu não conheço
Ou foi alguma coisa que a senhora viu?
Dona Adelaide – disse meu filho –
Não pense o que nunca existiu.

Apenas balbuciei meu filho, nada mais...
Olhe não fique assim preocupado.
Estou bem com a minha saúde
O desmaio já é coisa do passado,
Repito, foi um mal estar passageiro,
Nada grave fique sossegado...

Vou deixar os Silvas, por um instante.
Para falar dos arquitetos do mal
Dom Estevão e Palhares Pontuar,
Símbolos da maldade universal
Sem perceberem, foram reconhecidos,
Por dona Adelaide, de forma casual.

***

Deixaram o local acreditando
Que não foram vistos por ninguém
E com as identidades preservadas
Graças ao desmaio, saíram-se bem.
O tumultuo dos Silvas os ajudou
Indiretamente como lhes convém.

Os facínoras imunes se recolheram
Ao QG confiando na impunidade
E dispostos a forjarem novos planos,
Os dois gênios da infernalidade
Cuidaram voltar a casa dos Silvas,
Num gesto infame de irracionalidade.

Palhares a cabeça criadora do crime,
Monstro nas ações farta crueldade.
Dom Estevão, o cabeça da ganância,
Império do horror da humanidade,
Loucura imortal dos homens insóbrios,
Opressores tenazes da moralidade.

Após um mês de falsa tranqüilidade
Os lidadores do mal queriam ação,
Buscavam um momento, uma brecha,
Para enfim, darem cabo à missão;
Dom Estevão queria aquelas terras
Sem que elas lhe custassem um só tostão.

Palhares argüiu com detalhes um novo plano,
- Dom Estevão em nada mais pensou,
Seduzido pela ambição, pela ganância,
Para casa dos Silvas se encaminhou,
Interessava-lhe apenas o pequeno sítio
Da família que ele um dia aterrorizou.

Disfarçados de empresários bem sucedidos
Os delinqüentes cheios de ansiedade
Acudiram à casa da família Silva,
Alimentando a soberba, a vaidade,
Venenos incompatíveis com o bem,
Que matam o espírito e a dignidade.

Os falsários bateram a porta dos Silvas,
Seu Audálio gentilmente os atendeu
Com um sorriso largo e gestos afáveis
As honras da casa aos estranhos ofereceu,
- entrem, os senhores são bem vindos:
Hospitaleiramente os acolheu.

Depois de acolhidos e bem acomodados,
Palhares sarcasticamente comentou:
O senhor deve ser um homem muito rico!
- Seu Audálio em seguida retrucou
- Não. Sou apenas um velho aposentado
Que nesta vida muito trabalhou!

E como se chama o senhor?
- perguntou Dom Estevão de Quilmar.
Eu sou Audálio Silva, seu criado,
Diga-me em que posso lhes ajudar.
Não olhe a casa, a minha esposa saiu,
Mas prometeu não se demorar.

Disse Dom Estevão, caro Audálio,
Eu preciso de uma informação
- Respondeu seu Audálio – Se eu souber,
Servi-lo-ei com imensa satisfação
Desde que eu tenha conhecimento
Do referido fato em questão.

Dom Estevão, disse: bom Audálio,
Eu preciso que você me compreenda.
Estou querendo aqui me instalar,
Mas antes quero comprar uma fazenda,
Que tenha terras boas e produtivas
E que esteja no mercado para venda.

Disse seu Audálio – nobre cidadão,
Por favor, diga-me a sua graça.
Todo mundo tem um nome e merece,
Independente, da condição, credo e raça,
Ser chamado pelo nome de batismo
Mesmo que ele represente uma desgraça!

Eu me chamo Estevão de Quilmar,
Posso dizer ainda, “Estevão seu criado”.
- neste instante Palhares transfigurou-se
Porque esta frase era a senha do passado
Que agora voltava a ser pronunciada,
Num momento difícil e delicado.

A frase representava uma sentença
De morte para quem se atrevia
Cruzar o caminho de Dom Estevão,
Atiçando a sua mente em agonia,
Escrava da cobiça e da ganância
Alimentos de sua esquizofrenia.

Ao pronunciar “Estevão seu criado”
Olhou Palhares e em seguida se levantou,
Ordenou-lhe, levante-se vamos embora,
A minha paciência aqui já se esgotou,
Este sujo velho maldito me ofendeu,
Com palavras venenosas me atacou.

Seu Audálio ao ouvir essa agressão
Em fração de segundo se pós de pé,
Fitou nos olhos de Dom Estevão
E disparou: eu não sei quem você é,
Talvez, quem sabe um velho vulgacho,
Desses que a ninguém leva fé.

Dom Estevão gritou velho canalha
Vou lhe mostrar quem é Estevão de Quilmar,
Sacou de um punhal e irado investiu
Contra seu Audálio para a vida lhe tirar,
Porém, foi contido por Palhares,
Que o impediu de mais um crime praticar.

Seu Audálio estava desarmado,
Mas não temeu a fúria do arrogante,
Que com o punhal na mão ameaçava
Matá-lo e estrangulá-lo consoante
Os antigos métodos do passado
De modo cruel e degradante.

Estavam em meio à troca de farpas,
Ameaças graves, agressões verbais,
Desrespeito, abuso, truculência,
Soberba lânguida, atitudes radicais,
Sadismo moral de baixo nível,
Egocentrismo com gestos teatrais.

De repente, Palhares eleva a voz aos berros,
Tenham calma, vamos conversar!
Vocês nunca se viram antes
Como podem tais atitudes tomar?
- disse seu Audálio, eu os conheço,
Desde o seqüestro da minha filha Rilmar!

Nesse momento Dona Adelaide e Rilman,
Entraram em casa apressadamente,
Ainda puderam ouvir o fim da frase,
Dita por seu Audálio solenemente,
Rilman empalideceu e quase sem fala,
Olhou os visitantes, apático, indiferente.

E continuou seu Audálio dizendo:
Monstros desalmados, vis, infernais,
Há vinte e um anos venho buscando
Provas para os seus crimes cruciais.
Hoje encontrei as provas desses crimes
E pretendo leva-los aos tribunais.

E olhou para Rilman e disse:
Meu filho, estes dois bandidos,
Há vinte e um anos cometeram
Um dos crimes mais doloridos,
Seqüestrando a sua irmã gêmea
Deixando sua mãe e eu estarrecidos.

Sua mãe quase enlouquece,
Eu perdi o gosto pela vida,
Chorei noites sem parar
Sem achar uma saída,
Sofremos muito sozinhos
Numa existência entristecida.

No dia em que vocês dois nasceram,
Éramos os pais mais felizes do mundo,
Tivemos um casal gêmeo, dois anjos,
Dádivas do supremo Deus fecundo
Que nos concedeu essa graça
Mas é um mistério profundo.

Porque a sua mãe engravidou
Sendo estéril para a ciência
Que nos disse severamente
Que não teríamos descendência
Porém, nosso Deus supremo,
Foi Justo em sua anuência.

Depois que vocês nasceram,
A sua mãe nunca mais engravidou,
Exames e análises foram realizados,
Mas em nenhum a ciência explicou,
As causas da esterilidade precoce
E nem como a gravidez se formou.

Dona Adelaide tomou a palavra
E disse: filho, essa é uma dura verdade,
Dois dias após um parto muito feliz
Estes dois monstros sem dó nem piedade,
Invadiram a nossa casa e levaram Rilmar,
Nunca meu filho, vi tamanha perversidade.

E no lugar de sua irmã deixaram
A filha de Estevão que não sobreviveu,
Um parto de alto risco e complicado
E que uma decisão difícil envolveu
Entre salvar a filha ou a mãe que padecia,
Sacrificou-se a filha e a mãe quase morreu.

Mas desse parto ficaram graves seqüelas,
Que fragilizaram a saúde da gestante,
As quais geraram uma forte depressão
Causando-lhe adinamia importante
Condenando-a uma cama invalida,
Quem tivera uma vida abundante!

E, com a morte da filha, este monstro,
- Apontou para Dom Estevão de Quilmar,
Desesperado voltou-se contra Deus,
Sem querer seus desígnios aceitar,
Esnobava e dizia-se tão influente
Capaz de o próprio Deus subjugar.

Sob o impacto de tais revelações,
Tentava o jovem Rilman compreender,
O porquê de tanta infâmia, necedade,
Dislate insondável, loucura ou prazer,
Enfim meu Deus, que entes são estes?!
Indagava Rilman, sem nada entender.

Enlevado em suas reflexões,
Sobre os fatos que acabara de ouvir.
Fitou os delinqüentes enrustidos,
Sem se quer palavras lhes proferir.
Depois, disse-lhes – são crimes hediondos,
Cabe a justiça o direito de lhes argüir.

Ainda sob as inquietações do espírito
Que lhe cismava no íntimo do coração,
Rilman talhava no lajedo do pensamento
Espectro indômito de amor, de perdão;
Enquanto, o maldito sicário Palhares,
Espreitava um descuido, uma desatenção.

***

E, foi numa impressão de desleixo,
Ou irreflexão digna de fera acossada,
Que Palhares julgou ser o momento,
De fugir daquela situação inusitada,
Tentar atacar Rilman pelas costas
Seria uma saída, porém saiu frustrada.

Porque Rilman cuidava atentamente,
Os movimentos de Palhares Pontuar,
Que num instante de uma inflexão
Tentara o seu terçado alcançar
Que usava preso à perna direita
Para de situação difícil escapar.

Mas antes de atingir o seu intento
Fora advertido da loucura que fazia;
Palhares reconheceu que o jovem Rilman
Era “osso duro de roer” em demasia,
Portanto, pensou: eu saio dessa,
Embora exponha toda minha covardia!

E num ato impensado ajoelhou-se
Aos pés de Rilman rogando indulgência.
Acusava Dom Estevão como autor
Intelectual dos crimes e da insolência
Praticada contra as vitimas inocentes
Sem apiedar-se dos rogos de clemência.

Palhares sentindo-se perdido
Procurou inculpar seu antigo senhor.
Dizia: este homem é um sádico criminoso,
Que domava o meu ego de estranho alor.
Não sou culpado fui um instrumento
Nas mãos deste gênio de distinção inferior.

Enquanto Palhares fazia a sua defesa,
À Dom Estevão todo pecado evidenciava.
Os brios, os valores dos monges do crime,
No sangue novo da verdade se humilhava.
A arrogância delinqüida aos pés da razão
Combalida como fumo definhava.

E Dom Estevão ali posto, lânguido,
Desmascarado, entregou-se debilmente.
Cabisbaixo, vencido pela ganância,
Tez suada, orgulho laxo, decadente.
Quem fora antes o berço da truculência,
Acuado expõe o seu imo indolente.

Mesmo assim, disse: entulho humano,
Acusa-me dos crimes a intelectualidade,
Mas não nos é útil o teu modesto ardil
Que destila peçonha de letal propriedade;
A cria é tão culpada quão o criador,
Principio moral da racionalidade.

Sou culpado, bem sabes escravo cobarde!
Mas credite à justiça a injustiça cometida,
Exigia-me o dízimo leal e leal a mim a lei;
Bem vês, o escambo sangrava a carcomida,
Deusa que se faz cega para não se enxergar
E deleita-se do premio, em festa presumida.

O antigo senhor, ora inútil face à verdade,
Assume a culpa, mas invoca a companhia,
Do serviçal ardoroso, que rude o renega,
Sob um grave olhar que de justiça se ardia
Numa densa chama que colore e santifica
A alma esgarçada em meio à agonia.

E, da casa dos Silvas, correram os fatos
A boca larga consumindo a cidade;
A vizinhança sempre solícita e gentil,
Cuida receosa a inábil e temeridade,
Dos sequiosos atreitos as veniagas
Que nodoam a deusa, saciam a criminalidade.

Inunda uma multidão curiosa e incrédula
À informação que nutria a boca popular;
Nas mentes a justiça ascende ávida, nua,
De ilicitude iníqua que humilha e faz calar
A populaça entorpecida da virtude esplendida
Clamava em transe: esperança faz-nos sonhar!

A turba evoca para si a palavra extrema
Como prêmio justo à dor do passado
E, blasona a mundos vitima fito ínfero,
Da flor que desde longínquo findado
Impõe severamente o misero jugo
À massa desprezível de fado judiado.

A nata pávida teme do povo juízo ousado,
E pusilânime recua arrimo aos tiranos,
Que curvados ante o aço da face pura,
Sondam-lhes olhos nobres espartanos,
Zelosos ao olhar rogado dos penitentes,
Que cuidaram alimentar-se de vis planos.

Enfada-se a ralé ante a hesitação da lei
Que afeita ao coluio tarda em responder
Com zelo a sanha incivil, cruel e fria,
Oferecida à gente indefensa, sem poder,
Pelos favoritos obreiros da nobre deusa
Vencida pela pecúnia que a faz esmaecer.

***

Após vários apelos dos Silvas, eis o poder:
Juiz, promotor, advogados – sangrando!
Dirigiu-se seu Audálio, ao M.M. Juiz:
Excelência as vossas mãos, estou entregando,
Estes dois homens que os acuso de crime
Que minha casa há muito vem reclamando!

Há vinte e um anos, Doutor Juiz,
Numa noite feliz e jamais esquecida,
A minha esposa enfeitara a nossa casa
Com uma dádiva santa, muita querida,
Que fora arrebatado do seio materno
Numa atitude extrema e desmedida.

Seu Audálio, ainda, orava ao juiz,
Quando alguém gritou: a moça não!
Um Calafrio arrebatara o velho Silva,
Que tão logo lhe sugeriu uma reação
De acudir a porta para ver os reais fatos
Que se davam em meio à multidão.

Abriu a porta e a sua alma olvida-se...
Num silêncio profundo, quase mortal!
Um grito desafiou a fúria da cópia,
Que se domou ante a sobrenatural
Energia do brado: ela é minha filha!
A massa em êxtase cessa a ira fatal.

De repente, o velho Silva, caminha,
Teso e determinado rumo à multidão,
Que ostentava como troféu macabro
A jovem Marralla, filha da ambição,
Singular de um ser misero e incapaz
De viver povo em santa comunhão.

Seu Audálio aproximara-se da massa
Que tinha a filha da dor em seu poder;
Sem enxergar risco nalgum enfrenta-a,
E dela arrebata a jovem preste a sofrer
Na carne a zanga dos que tiveram a alma
Cominada por um severo padecer.

Após o feito contempla a multidão
De olhar ateu, queda e gesto tolhido;
Sem discurso lídimo volve-lhe as costas
E consigo a jovem refém de rosto lívido,
Segue-o sem alcançar os fatos ao redor
Nem absorve a ação do ancião destemido.

A cabeça pronta a expluírem neurônios,
Talavam-lhe a mente insólitas questões:
Fora arrancado a muque de sua casa
E conduzida ali a gritos e empurrões,
Até ser salva por um anjo... Um pai...
Que lhe atenuou as agruras, as aflições.

Para trás ficara multidão indiferente,
Cenho franzido ante a ação inopinada
Que culminara em perversa frustração
E que inibira a ira justa, acalentada,
No seio torturado de uma razão incivil
Cria ilógica da indecência estratificada.

Findada a obra o semideus formidável
Enleva-se: alma panda, rosto remoçado;
A vida agora tinha sentido e nome,
Osso e carne, quimera e rumo traçado,
Com o nariz apontado para o além mar;
Filha e pai ter-se-iam em casa lado a lado.

No berço origem dos fatos demandados,
A fera atormentada e o herói imenso
Arriaram as dores da alma delinqüida,
Sob o olhar multiforme, fingido e denso,
Ali aos pés da iníqua feiúra humana
Surrealismo fatal de brilho intenso.

Exausta, queda-se. O flagelo da ira justo
Gastara seu ânimo com esgares de dor:
Exaurira o alento, o domínio do estro,
O equilíbrio da palavra, o imo do interior;
Até experimentara a cicuta que há no ódio
E a truculência que embriagara o rancor.

Sem suportar o calvário psíquico e moral
Imposto pela cólera da ralé injustiçada,
A jovem também vítima de outra vítima
Da justiça que não é justa, mas viciada,
A pratica de hasta privada de sentença
Labéu que a torna desmoralizada.

A carga emocional fragilizara suas forças,
O próprio corpo lhe tornara um rude fardo,
Os músculos perderam os movimentos,
A visão turva, indefinida, tino ilhado,
Esgotamento físico, espasmo... Desmaio:
Até o preço da morte fora-lhe cobrado.

Com o desmaio da jovem o velho Silva,
Eleva a voz – Adelaide é nossa Rilmar!
Venha ajude-a ela apenas se sentiu mal,
E precisa muito de você para se alentar:
Venha Adelaide é a nossa flor, a nossa filha,
A encontramos veja-a, venha lhe amparar!

A matriarca dos Silvas diligente e atenta
Acolhera no colo a flor dos sonhos, dos ais;
A prenda dos céus que lhe obrara alegria
Felicidade suprema, emoções siderais;
Dádiva nascida do atormentado humano
Que bebera a dor nos seus velhos cristais.

Aos cuidados extremosos do seio materno
A presa lanhada da agressão emocional
Tomada ainda das perturbações psíquicas
Recobra alento no regaço cálido maternal,
Sob o olhar zeloso da doçura e do amor
Estatutos de mãe em seu ninho natural.

* * *

E, ainda sob a emoção que doira a alma,
O velho Silva, disse: doutos da virtude,
Há muito, os esperava meus rudes sonhos...
Na vossa justiça a formidável solicitude,
Cabe, portanto, filhos da deusa Ártemis,
O selo justo que ardia na vossa juventude.

Como dizia antes doutores, estes homens,
Levaram à minha casa um grande mal;
Sofri vinte e um anos penei duas décadas,
Com repulsa irônica e escárnio moral,
Desprezo, desdém, direito sem sustância,
E fadiga da lei a minha condição social.

Assim lutei, enfrentando a elite e a justiça,
Irmãs siamesas afeiçoadas à perversão;
Derrotei-as na derrota, venci-as na paz;
Agora estamos na busca plena da razão,
Acusados e vítimas aos pés do tribunal
Esperando o veredicto da questão.

O juiz disse: senhor Audálio tenha calma
Desse modo a justiça não pode funcionar,
A sua casa não é fórum nem tribunal,
Um júri aqui não tem como se realizar,
Além do mais falta o pessoal de apoio
Para que possa as oitivas registrar.

E também, os autos com a queixa crime,
Peça elaborada pela polícia judiciária:
Qualificação, declaração, a nota de culpa...
E o relatório parte importante e necessária
Com as principais informações no seu teor
De forma sucinta, cronológica e ordinária.

É necessária a presença das testemunhas
Para que se dê credibilidade ao feito,
Sem elas não se pode ter audiências
É a doutrina que impõe esse conceito,
A justiça sozinha é uma nau sem rumo
Que não ancora no porto do direito.

Outro fato que inibe a não realização
De modo formal um julgamento popular,
É a ausência do jurado, cidadão do povo,
Sorteado como juiz de fato para atuar
No conselho de sentença que terá o mérito
E competência exclusiva para julgar.

E, ainda convém lembrar aos senhores,
Que um cidadão qualquer para ser julgado
Deve contra ele existir uma forte acusação
E indício claro do crime que fora praticado
Só assim o ministério público terá condição
De denunciá-lo, sobretudo fundamentado.

Neste comenos, Dom Estevão interveio,
Senhor juiz, eu posso me pronunciar?
Como não – Respondeu o magistrado,
O senhor pode e até deve se explicar:
O justo é a abastança nobre do direito
Que a justiça se obriga a lhe guardar!

Obrigado excelência pelas palavras,
As quais me deleitam, mas não as mereço.
Antes me sedavam como canções de ninar
E o meu eu servil refugiava-lhes o endereço,
Quantos colendos se prosternaram ante mim
Oferecendo-me praça da justiça a seu preço?

E no palco de “Ártemis” esses “chicanistas”
Togados intocáveis, gênios doutrinadores:
Homens-deuses imortais, filhos dos céus,
Ilibados mestres, especialistas julgadores,
Que oravam à lei, mas não rezavam à filha,
Cega com as infâmias dos exímios doutores.

Corrompidos de índoles saciei-lhes a gana
Que nutriam desde sempre pelo vil metal;
Ornei-lhes de sonhos, de gozos e luxúrias,
Atiçando-lhes os prazeres, a vaidade pessoal,
Tornando-os vândalos da ética, do costume,
E iconoclastas perversos da conduta social.

Quanto ao crime que me acusam, não nego:
Cometi-o em sã consciência, sou culpado!
Fiquei possesso com os desígnios de Deus
Em trazer-me natimorto o amor cuidado
E, o pior ainda, vê-lo inerte, sem brilho,
Um deus sem céu, sem palácio, derrotado!

Senti-me impotente, desolado e incapaz,
Em reagir ao fato que me ardia em aflições;
Todas as energias negativas do submundo
Moveram partículas ígneas em turbilhões
Atingindo a filha do sol e neta da lua,
Patrimônio genético das minhas emoções.

E sob a ira experimentada, eu gritei: Deus,
Vós tirastes de mim a pérola mais preciosa!
Abundastes em dobro a dor a minha casa;
Destruístes a quimera paterna mais frondosa;
Negastes a terra a minha progênie infausta,
De forma rude, e cruelmente impiedosa.

Exultava-me de esplêndido sonho ser pai,
Mas a estéril dama negava-me a felicidade!
Curandeiros acudiam a minha ânsia em vão
Até que um dia real fez-se a maternidade,
Regozijos, festas, o lume intenso da nobreza,
Ali palpável, numa pura e cristalina realidade.

Todavia, dissera-me a ciência: em vão à luta.
Na aridez nada germina, cria-se só vaidade!
Justifica-se a filha fantasiosa o ufano prazer
Dos incautos ávidos dos brios da paternidade?
Quiçá, outros tolos creiam na ira dos deuses,
E outros néscios, no desânimo da virilidade.

A inexplicável concepção soara como frótola
Na velha Itália, a quatro vozes: melodiosas!
Doída como o lamento do infeliz “marrueiro”,
Quando do amor sofreu, “chifradas poderosas”
Assim, fora à nova, prodígio das insistências,
Do eu desejo, nas cópulas áridas, infrutuosas.

Hoje, sou apenas os ossos de um sonho vão,
Que pereceu na arquitetura sem a arte do ser!
Enganar-se-lhe não é senão o oficio do tolo
Que sonha o seu próprio mundo acontecer
E morre em meio ao nada fugindo do obvio
Sem alcançá-lo na tebaida larga do querer?

* * *

Assim, Dom Estevão findara o seu discurso,
Eloqüente, incisivo, inflamado, arrebatador.
Culpando os [guias dos olhos de Ártemis],
Pela concupiscência que sujara o esplendor
Da diva dos sonhos do semideus baiano,
Águia de Haia, colendo de verve superior.

Marralla despertara em meio à preleção,
Que fizera seu “pai” antes olhos inquisidores;
Sentira apiedar-se pela primeira vez na vida
Movida por sensações custosas nos horrores
Da via-crúcis em que bebera a ira e o amor
No calvário extremo das próprias dores.

Aproximara-se do infeliz com olhos de santa,
Já que os de humano, talvez, fizessem-no cão.
E quase imperceptível balbuciara: eu o perdôo!
Agora vá que [os Meus] também lhe perdoarão,
E livre-se da “justiça” com a mesma faculdade
Que adquirira na seleta irmandade da podridão.

Depois se voltara para os venais postos na sala,
Fita-os... Um a um... Por fim, sentencia: acabou!
O velho Audálio não contesta a decisão da filha
Em remir o anjo infernal que tanto lhe aviltou
E, com um olhar terno e meigo consulta Rilman,
Que com ademanes singelos o ato referendou.

Bem senhores: como disse minha filha, acabou.
Podem ir. Vão em paz é o desejo da nossa parte,
Seu Audálio mais diplomático agora filosofa:
O meu fim propõe um começo, como na arte,
Que começa pelo fim a obra e ai nasce à vida
Que se eterniza, em oposição à filha de marte.

Os crentes da maldade deixaram a casa/tribunal
Como se os seus crimes já estivessem relevados;
Os Silvas se recolheram em si para louvação
E navegaram nos sonhos nunca navegados,
Abraçaram-se num abraço de carne e sangue,
Ante as vontades prazerosas dos afortunados.

Com ares de vencedores, os náufragos da vida,
Largaram os Silvas da fé aos motejos do poder.
Lá fora a massa rouca só respirava ar e justiça,
Os opostos se contraem e se achegam para ver
Os olhos de Ártemis abertos nos olhos do povo
E, incrédulos vêem a ira da choldra renascer.

E, posta ainda ali, sedenta estava à multidão,
Consubstanciada no principio da igualdade
Não conteve a ira santa ante o quadro cruel
Banquete dantesco da mais tirana insanidade
Em tela, ao vivo, réus e justiça fidus Achates,
Aos olhos do povo que se ardiam em verdade.

Os súcios inflados dos bafejos fidos do poder
Ousaram peitar a ralé atrozmente inspirada,
Logo foram julgados, condenados e trucidados,
Seus corpos atassalhados até a ira extremada
Do homem que o próprio homem escravizara,
Em sua ânsia de potência, feroz e indomada.

A fúria da turba ganhara ânimo irrefreável
A violência espalhara-se acima da razão:
A vida estava a um sopro da intolerância,
A morte a um passo rude da crua danação
Infligida com excesso de uma vaidade fria
Fertilizada n’alma sem chances de perdão.

O conflito atingira a robustez de Atlântida,
A animalidade emergira em oposição à mente
Que assumira grandeza de feição colossal
Matando o sistema que inspirara insolente
Leis que segregaram o humano pelo humano
E feriram a humanidade judiciosa da gente.

Atlântida tornara-se um campo de batalha,
Julgava-se a intolerância com intolerância;
A idéia em desuso não cuidara erguer a paz
Indigente derrotada aos pés da rutilância
Do ódio veneno letal da mente e do corpo
Que o meio produz desde a tenra infância.

Em ruínas por insaciabilidade da cobiça
E destroçada por um ideal de cruel vigor,
AZTRAN sob os escombros da nobreza
Afligira-se em torrente lamuria o cruor,
Que exibira com loucura a ira justa
Na inculta razão da incivilidade do rigor.

Confrangida ao extremo e sem lampejo
De quimera que iluminasse a face morta,
Declinara a vergonha sobre peito inflame
Lamentoso como os quícios de uma porta,
Que sofreram oxidação por entre os tempos
Assim como a dor que ninguém suporta.

A fereza da ralé ostentara nova linguagem
Por mente em eras antes nunca alcançada
Tamanha bruteza só em visão apocalíptica
Que o siso humano jamais vira expressada
Em nenhuma biografia dos piores tiranos
Assinalada violência ficara registrada.

Há! A choldra. A choldra velha às vezes nova,
Ás vezes, apenas a choldra omissa sem causa,
Sem rumo; ás vezes redentora, às vezes morta!
É... A choldra ás vezes revolucionária em casa,
Ás vezes pelega nas ruas, às vezes sem e nem,
Ás vezes das vezes sem vez, sem ar, sem asa!

Os horrores em Atlântida orçaram o inferno,
Consumara-se o oráculo do Frei profeta:
Esta terra nadará em “sangue”, e se cobrirá,
De uma sombra verde, e ficará “deserta”,
Por longínquos tempos, viverá sem “destino”,
Até a vinda de um povo de índole modesta.

E, ainda hoje, há um miasma em AZTRAN,
Oriundo da gordura sociável da perversão
Que saciaram vorazes anelídeos do povo,
Espectros de santo nos aras da abjecção
Assassinos da ordem que definharam almas,
Filhos do diabo, anhos fiéis da corrupção.

AZTRAN, AZTRAN dos idos novos vícios,
Ainda vive errante nas “quebradas do sertão”,
Descansa das andanças no vale de igubas
Cumprindo-se o pressagio de admonição
Proferido pelo visionário prior germano
Á rebelde libertina da divina razão.

Movida de esperança vive um fatal desprezo
Opróbrio afeito às nulidades de seus varões
Rambles justos dados às ronhas e sofismas,
Artes cultuadas dentre as antigas tradições
Insólitas àqueles que vêem há anos luz
Suave refrigério às futuras gerações.